Reportagem retirada da Revistaviverbrasil
O jogo de cartas, seja na internet ou em torneios no país e no exterior, enriquece (ou empobrece) pessoas que passam a viver apenas da jogatina
Texto: Decca Furtado | Fotos: Alexandre Brum, Nélio Rodrigues
Anderson Luciano, que ganhou três torneios: “Se a miss Brasil passar nua à frente de uma mesa de pôquer, ninguém vai notá-la”


Anos atrás, Walduck Wanderley, o falecido fundador da Construtora Cowan, disse frase lapidar: “Jogo e mulher não quebram ninguém que tenha 50 milhões de dólares. O que quebra são os maus negócios”. Mas é possível alguém não só não quebrar como ganhar dinheiro e viver bem do jogo? Sim. A paixão já fez muita gente trocar a profissão pelo jogo de cartas. O médico Leo Bello, um dos maiores nomes no país, é um exemplo.

Outro é o norte-americano Chris Fer guson, PhD em ciências da computação e um dos maiores jogadores do mundo. Em Belo Horizonte, um dos exemplos é do ex-empresário Anderson Luciano. De setembro para cá, ele ganhou três torneios e mais de 200 mil reais em prêmios, incluindo os 150 mil do Brazilian Series Open Poker, etapa do Rio de Janeiro, em 2009.

Sua história no carteado e na vida é uma gangorra. Ao nascer, sua família era classe média e se tornou pobre logo depois. Isso o obrigou a trabalhar desde criança. Mas progrediu rápido: aos 18 anos montou sua primeira empresa, a Controltec, dedetizadora. Ela e outras lhe deram o patrimônio de 5 milhões de dólares, que evaporou em 2002 por causa de maus negócios, dos quais se recuperou aos poucos.

Em 2006, Anderson descobriu no pôquer gratuito da internet uma distração. Ao domínio dos fundamentos seguiu-se a primeira vez num cassino clandestino, que não recomenda. “Nesse ambiente não há jogador-freira e o jogo é o cash game, de apostas altas”, afirma. Os 1,5 mil reais que levou para a estreia foram todos perdidos. “Fiquei arrasado”, recorda. Horas depois, o empresário racionalizou, viu que cometera erros e se prometeu aprender a jogar. Foi o que fez ao continuar a frequentar o cassino, onde ganhou e perdeu quantias apenas razoáveis.

O pôquer não é um jogo de azar, mas de inteligência

Jogadores de pôquer: movimento de bilhões de dólares no mundo

Mais adiante, em 2008, ele tomaria duas decisões que mudariam a sua vida. Uma foi abraçar a umbanda. “Eu não tinha religião e sentia grande vazio”, diz o já pai de santo. A segunda foi se afastar das empresas: ex-funcionários foram transformados em sócios e lhe pagam metade do lucro. De lá até setembro de 2009, quando profissionalizou-se, Anderson passou a estudar pôquer. Ele tem nove livros sobre o assunto. Um deles é de um PhD americano que escreveu sua tese em cima do jogo.

Por aí o leitor já sabe que o pôquer (em inglês significa quem atiça), criado pelos peões do velho oeste norte-americano, não é um jogo de azar. Naquela época matava-se muito facilmente. O jogo permitia a convivência, sem que um atirasse no outro. Mas podia matar tomando todo o dinheiro. Essa foi a grande sacada que tornou o jogo tão popular.

Desde que saiu das pradarias para os salões, o jogo se sofisticou e está em constante mutação. A modalidade que os peões jogavam, a five cards, por exemplo, não existe mais.

A da hora é a texas hold’em, na qual cada jogador recebe duas cartas e cinco são abertas sobre a mesa. Nos próximos anos, espera-se que os profissionais migrem para a omaha, na qual se joga apenas com quatro cartas abertas. Também espera-se que ele se torne um esporte olímpico. Graças à sofisticação, o pôquer movimenta bilhões de dólares anuais nos cassinos.
As mulheres são raridade no pôquer. mas há feras entre ela.
Popularização: há estimativa de 700 mil jogadores no Brasil
Perto da internet, isso é fichinha. Um exemplo: às 21 horas do Brasil de uma quarta-feira, 92 mil pessoas de todo o mundo estavam conectados no Full Tilt, um dos maiores entre os mais de 200 portais de pôquer existentes. A aposta era de 5 dólares. Em menos de um minuto, nove pessoas jogam uma mão (no rush joga-se até 300 por hora. Nesta modalidade, a velocidade é tão grande que a royal flush, a sequência matadora, cuja probabilidade de ocorrer num torneio é de uma em mais de um milhão de jogadas, torna-se comum).

A 5 dólares por mão e com a média de 30 mil adeptos em cada um dos sites, entre 21 e 24 horas, período em que está bombando na internet, o pôquer, a cada minuto, movimentaria algo ao redor de 30 milhões de dólares. Resumindo: mais de 1 bilhão de dólares em apostas por hora quase todos os dias…

Aliás, no pôquer da internet, temos um gênio na capital mineira. Trata-se de Caio Pimenta, 20 anos, que já teria faturado mais de 1 milhão de dólares. Ele começou quando cursava a 8ª série: vendeu sua coleção de livros de Harry Potter, juntou 50 dólares e se cadastrou num portal. Evidentemente, a família era contra. “Jogo nunca deu futuro pra ninguém. Não vai ser pra você que vai dar”, disse-lhe o avô segundo publicado na revista Cardplayer Brasil.

Caio não teve tempo para prestar atenção ao conselho, pois joga cinco dias por semana, das 15 até as 3 horas da manhã. Ele abre simultaneamente 12 telas no micro – não raro 14 – e em cada uma joga uma partida. Sua ambição é estar entre os cinco melhores do mundo na internet. Todo o seu talento foi reconhecido, em 2008, ao participar de 90 mesas finais dos maiores sites deste carteado.

Num dos torneios que ganhou, o Sunday Millions, seu prêmio foi de 259 mil dólares. Este desempenho chamou a atenção do Full Tilt, que lhe paga quantia mensal para ser seu garoto propaganda e também as inscrições para os torneios que disputa. Para ele, o bom jogador deve ter autocrítica, agressividade, disciplina, autocontrole. E sonhar. “É preciso ter metas”, disse na mesma entrevista. Para quem quer segui-lo, ele adverte que o pôquer não é nada fácil. “O pior é ficar sem vida social, ver os amigos se distanciarem.”

Quatro Princípios
Brazilian Series Open Boker: campeonato brasileiro
O pôquer tem quatro princípios. O primeiro é o bank roll, a poupança que toda pessoa faz para jogar. O profissional jamais copiará Walter Brennan, um dos maiores atores coadjuvantes de todos os tempos. Em Rio Vermelho, faroeste de Howard Kanks, Brennan interpretou um jogador que aposta – e perde – até a dentadura! Claro que há gente que joga numa só noite milhões de dólares. Mas mesmos esses precisam ter o seu bank roll.

Caio construiu o seu paulatinamente jogando mãos de 3 dólares. Depois de 5, 10 e 20. Mas, quando a poupança já era de 12 mil dólares, perdeu a metade. Parou com as telas simultâneas – isso mostra disciplina e autocontrole – e só voltou a elas com o capital já recomposto. Hoje Caio encara partidas de 10 mil dólares. O bank roll de An derson é de 200 mil dólares, com limite diário de 2 mil dólares. Se perdê-los, ele sai fora. “É por isso que não tenho medo de perder o nosso patrimônio”, diz Patrícia, a esposa. O casal tem construção num sítio de mais de 3 mil m2. E um BMW zero na garagem.
Full Tilt: um dos maiores portais de pôquer

Torneio ao vivo é uma maratona com as cartas e dura até mais de 12 horas. Anderson treina na internet e, como todo bom jogador, planeja e consolida tudo numa planilha em que combina uma série de informações, incluindo as místicas, sobre as quais não fala. Quem joga na internet tem de ser mais cuidadoso ainda. Existem softwares que analisam os jogos e os jogadores. Segundo os especialistas, é necessário adquiri-los. Mas é fundamental conversar e jogar com os profissionais: isso melhora a técnica.

Os tells, sigla de um termo da psicologia para expressões corporais, são mais um dos princípios. Movimentos quase imperceptíveis, como mexer um dedo, sorrir ou contrair os lábios, denotam o jogo do adversário. É preciso ter memória fotográfica e visão periférica acentuada para notá-los. Cassino Royale, com Daniel Craig no papel de James Bond, mostra bem a importância dos tells e como interpretá-los corretamente, mesmo porque, com as fortes emoções das apostas, um profissional não consegue disfarçar muito quando tem alguém do mesmo quilate como adversário.

Afinal, todos pegam nas cartas, um gesto mínimo. “É aí que se faz a leitura. Eu só as pego depois de todos. Estou com par de ases? Minha cara é esta aqui: inexpressiva. E seria igual caso estivesse com um par de dois”, demonstra Anderson. Mas as mãos suam frio e ele não deixa ninguém vê-la assim. Quando perde, ele chora. “Só se é frio para os outros.”

Devido às habilidades requeridas, matemáticos, enxadristas, jogadores de gamão, engenheiros, entre outros, dão excelentes jogadores de pôquer. Contudo, boas jogadoras são raras, não passam de 2% do total. Por quê? O jogo exige concentração e isso talvez o torne concorrente delas. “Se a miss Brasil passar nua à frente de uma mesa de pôquer, ninguém vai notá-la”, diz Anderson. Mas se a miss for a norueguesa Annete Obrestad, 20 anos, que já ganhou bem mais de 1 milhão de dólares na internet e torneios, todos ficarão não só vidrados como com medo – entre as brasileiras o destaque é Daniela Zapiello, 5º lugar num torneio disputado em Punta Del Este.

O posicionamento à mesa, que muda a cada mão, pois o primeiro a jogar será o último da próxima rodada, é o terceiro princípio. Uma coisa é ter par de ases e ser o primeiro: há outros oito jogadores à sua frente e um ou mais deles podem ter jogo melhor do que o seu. Outra é possuir as mesmas cartas e ser o último. Este sempre leva vantagem, pois teve tempo para estudar jogo e jogadores. O mais rico (em fichas na mesa) intimida o mais pobre.

Daí a importância do blefe e do praticante usar boné e óculos escuros. Eles dificultam uma demonstração involuntária das cartas que se tem. “Eu não uso estes apetrechos e vou de cara limpa para melhor enganar”, diz Anderson. “Levo fones de ouvido para escutar Bee thoven. A música aumenta a minha abstração e a atenção aos adversários”. (Na internet não há tells nem disfarces e isso, aliado à velocidade, torna o pôquer ainda mais difícil).

As cartas são o princípio menos importante. Deve-se jogar com as cartas e as pretensões dos adversários e não só com as próprias. Evidentemente, um pouco de sorte não vai atrapalhar ninguém.
Doutorado
Aprender pôquer é como cursar faculdade. Anderson estaria ainda no segundo dos quatro anos. Para melhorar o seu jogo, ele agora vai morar parte do tempo em Las Vegas. Quer ver como os grandes jogadores se preparam, inclusive psi cologicamente. Mais adiante, sua pretensão é disputar grandes prêmios de até 12 milhões de dólares, mais 10 milhões em direitos de imagem.

“Já fiz uma plástica no rosto”, revela Anderson, que no momento se considera imaturo para disputar o torneio mundial.Mesmo quando estiver pronto, ganhar de Phill Ivey, Phill Hell muth, Johnny Chan, todos vacas sagradas do pôquer, não será fácil. Yvey, por exemplo, já teria ganhado mais de 100 milhões de dólares em torneios e direitos de imagem. Por isso e por enquanto, Anderson se contentou, a título de preparação psicológica, em colocar a foto do seu rosto no lugar da de um jogador que já ganhou 12 milhões de dólares. “Meu objetivo final é ter meu próprio cassino.”

A irresistível escalada do pôquer
* Parece irresistível: quatro anos atrás ninguém jogava pôquer legalmente no país. Mas agora já existe curso ambulante (TVPoker Pro On the Road), programas de televisão em estações abertas (Pôquer das Estrelas, na Band) e a cabo (canais ESPN), torneios em navios etc

* Mais importante, existe o Brazilian Series Open Poker (BSOP), o campeonato brasileiro. A ascensão do pôquer à categoria de um quase esporte coincide com a realização do primeiro BSOP (em 2007), disputado em 10 etapas, cada qual numa capital estadual

* Tudo isso está fazendo o pôquer cada dia mais popular. Segundo Amúlio Murta, editor da revista Flop, dedicada ao ramo, não há como saber quantos jogadores existem no país. Em 2007, eles foram estimados em 200 mil. “Calculamos que agora já são mais de 700 mil”, diz

* Um dos motivos da expansão é que, ao contrário do cash game, os torneios não permitem perdas expressivas. O máximo que se perde ali é o valor da inscrição e as despesas com hotéis e viagens. E isso está ao alcance de bastante gente

* Os ganhos também são limitados. No BSOP funciona assim: arrecadou-se um milhão de reais com as inscrições? O primeiro colocado recebe 150 mil reais, o segundo 100 mil e o terceiro 50 mil, por aí. O restante é para as despesas, incluindo o IR. O que sobra é o lucro dos organizadores

* Para jogar o BSOP, há que se filiar à Confederação Brasileira de Pôquer – muitos estados têm sua federação e organizam campeonatos locais. É o caso de Minas Gerais. De acordo com o presidente da Federação Mineira, Osvaldo Naves, ela tem 3 mil inscritos e organiza 10 torneios por ano, 205 foi o número máximo de participantes até agora, com prêmios de 7 mil reais ao vencedor

* Mesmo com a ascensão, os torneios brasileiros ainda reúnem pouca gente. Há dificuldades a contornar. Uma é a falta de lugar grande. Em Las Vegas jogam 10 mil pessoas simultaneamente. No Brasil, o recorde foi batido neste ano, em São Paulo, com 788 competidores

* Outra limitação é a duração dos torneios, sempre nos fins de semana, às vezes de sexta a terça-feira. Quanto mais participantes, mais tempo se leva para chegar ao campeão.

* O campeonato mundial, o WSOP, leva 11 dias para ser decidido. A terceira é que o pôquer de torneios, em vários estados, ainda é maldito