diabo-jogo

Era 25 de dezembro de 1999. Uma chuva grossa açoitava a janela do cômodo onde duas pessoas jogavam cartas. De um lado um garoto franzino, rosto redondo, queimado de sol; usava óculos escuros e tinha o braço esquerdo colocado às costas da cadeira em que estava, numa postura despreocupada, desdenhosa. Do outro lado, o Diabo. Não se achava como de costume (pele vermelha, chifres, um tridente): tinha a pele clara, quase desbotada, cabelos brancos abrigados por um chapéu de caubói e olhava para seu oponente à frente com muito esforço, como se a vista lhe fosse avara.

O jogo era o pôquer. Sobre a mesa (pequena, quadrada, vermelha) três cartas expunham um K de ouros, um 6 de copas e um 5 de ouros. Dênis olhava fixamente para o Diabo. Tinha à sua frente umas poucas fichas empilhadas, enquanto o outro ostentava uma grande pilha negra. Ao meio, quatro fichas indicavam que uma aposta havia sido feita.

Era a vez do Diabo. Dobrou a aposta de Dênis e passou a fitá-lo serenamente. Após mais ou menos um minuto, o garoto empurrou lentamente as suas fichas e o velho enrugou a testa…

Dênis estava desesperado.  Fora a uma encruzilhada e pactuara com o Diabo. Quisera dinheiro. Dera a alma. O Diabo negou. Propôs (sendo ele um jogador) que jogassem. Se ganhasse teria o que quisesse; não somente dinheiro, mas tudo o que o seu coração pulsasse. Se perdesse, teria os anos que lhe restassem acorrentados junto à sua alma no Inferno. Dênis teria em seu stack os anos que lhe esperavam (81, segundo o Diabo) e a cada ficha que perdesse um ano lhe seria lentamente aspirado e lançado no Fogo Eterno, como garantia pela partida, caso não conseguisse recuperá-la. O Diabo não revelou seu montante. Dênis aceitou o acordo; e com um abraço o selou.

Havia pouco mais de duas horas que se enfrentavam. Agora Dênis empurrava suas poucas fichas. O Diabo pensava. No flop havia Kd6h5d. Filou suas cartas mais uma vez. Um AK de copas adornava a sua mão. Considerou que Dênis blefava, que estava desesperado por vencer e assumira uma postura agressiva. Mas admitia: era uma jogada e tanto. Por outro lado (ponderava), essa poderia ser sua estratégia; talvez quisesse camuflar uma trinca fingindo um blefe. Seu rosto se avermelhava, como se, de dentro para fora, um fogo abrasante quisesse derretê-lo. Por fim, decidiu-se; e, lentamente, despejou suas fichas no pano.

O rosto de Dênis deslocou-se de sua face, como uma cortina caída. O Diabo abriu um largo e mefistofélico sorriso. Seu AK era bom. Dênis tinha apenas o suspiro de uma broca…

Argumentou com o desespero colado à garganta; alegou trapaça [o Diabo teria posto para si um stack maior que o de Dênis]. Por fim, implorou que reconsiderasse, que jogasse com ele outra partida. O Diabo ria; ria fragorosamente. Ria com o rosto voltado para cima. Mas era das profundezas de seu Lar que vinha aquela Voz. Pegou Dênis pelo braço, indiferente a seus apelos, e, virando-se para a porta, o arrastou para as profundas solidões do Inferno.